Edgar Moreno: O casal do WhatSapp

Por Edgar Moreno

COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.


Por muito tempo fiquei matutando que tema abordar na crônica do mês. Não pense o leitor que escrever é serviço fácil, mormente quando é para jornal, quando não se tem um norte ou quando esse norte vem duplo. O certo é que até agora me ponho na cruel dúvida de tocar o sino e acompanhar a procissão; de servir a dois senhores; de passear entre o lírico e o dramático. E eis que opto justamente pelos dois caminhos: quero uma crônica dúplex. Sim, uma coisa semelhante às geladeiras com dois compartimentos ou um apartamento com dois pisos. Todavia, aqui o sentido difere em semântica: uma coisa é singela, poética, romântica; e me refiro à cena dum casal que vi há uns dez anos, e a outra coisa é uma realidade crítica, um problema comportamental, um drama hodierno; e me referindo ao uso do WhatsApp, que se entende por “Quais as novidades?”, “E aí?”

Mas o leitor questionaria: Crônica dúplex: Isso há de dar certo? Não é mera invenção do cronista? E os textos não devem se focar num só assunto?

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Minha resposta é “talvez”; “gostaria que fosse” e “não”, respectivamente. A primeira pergunta está pendente da própria crônica. Quanto à segunda, seria uma honra ser eu – como Guimarães Rosa, Mário Quintana e João Cabral de Melo Neto – um artífice da língua. Apenas tento, mal. Contudo, inovar não é fato novo, tentar menos ainda. Manuel Bandeira inventou “teadorar”, verbo intransitivo (1947): “teadoro, teadora”. Bentinho, em Dom casmurro (1899), de Machado de Assis, não conseguindo concluir um soneto, apela ao leitor que o conclua. Tentei nos meus tempos de faculdade (1994), conseguindo a forma sonética, mas não a poesia, pois que ao artista, sua obra sempre lhe parece incompleta.

Quanto à terceira questão, de o texto focar-se num só assunto, isso é coisa de vestibular, momento crucial em que o acadêmico aspirante deve provar habilidade de compor um texto coeso, coerente e objetivo. Isso me lembra o ENEM/2012, quando um candidato quis misturar em sua redação a Imigração para o Brasil no século XXI com uma receita de miojo, obtendo seus 560 pontos de 1000. Afora isso, a linguagem objetiva se alarga para o prelo jornalístico, peças jurídicas, malas diretas, etc., ainda assim com seu poder persuasivo. Em terreno literário, no entanto, pode-se agregar num só texto, amor e ódio; presente, passado e futuro; política, tecnologia, arte e os drogados da Praça da Rodoviária. Tudo é uma questão de criação, reinvenção e ousadia, coisas de estilo.

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Mas... e o casal? O WhatsApp? “Ambos os três” são para mim, antitéticos. Sobre o casal, tenho que não há poesia mais doce, cena mais significativa. Aquelas duas almas: ela gorda e clara, ele magro, ambos nem feios, nem bonitos, mas felizes; ela a ser seduzida pelo seu próprio homem, na Rua Frederico Leda, próximo ao colégio Leda Tajra, à sombra da tarde em sua porta, numa cena rústica, pública e nobre. Depois tive de vê-la ainda, por ali, mais gorda ainda, grávida, talvez, a pedalar sua bicicleta rumo ao seu doce lar. Não sei bem por que, mas isso ainda me faz refletir o conceito de beleza e felicidade, sobretudo o de felicidade. Mas como supõe o leitor, não havia entre eles celular, WhatsApp, nem outro aplicativo, que não fosse a Humanus chemiae (química humana). A febre digital ainda não era epidemia. Agora dá até para afirmar: era justamente isso que proporcionava aquele aconchego conjugal. Já nas reuniões de que participo desde as escolares às literárias, o modus vivendi é o que tu já sabes, leitor. Cada máquina conectada na Net, desligada da pauta, a tirar selfies, a criar “ilhas humanas”... Respiro fundo... E, a propósito, aproveito o ensejo para desculpar-me com meus colegas, por não ter ainda esse aplicativo tão top, tão interativo,

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