Edgar Moreno: Comendo eu e meu cavalo


Por Edgar Moreno
COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno

Uma das coisas que sempre lembro de minha mãe são as histórias que nos contava ainda em meninos. Se não lhe era um hábito diário, é certo que foram preciosas vezes banhadas de ouro e lições. Os episódios variavam desde os bíblicos até suas reminiscências de criança, passando por fatos mais recentes. Mas o que eu pasmava em mamãe era sua boa memória. Contava um sonho ou uma narrativa com uma riqueza de detalhes... Era como se estivesse lendo ou vivenciando o enredo. Lembro que pelo natal nos juntava em audiência e contava em detalhes como se deu o nascimento do menino Jesus. Depois cantava um hino temático da Harpa Cristã. Assim, em sintonia com os assuntos das escolas dominicais, íamos conhecendo a História de Moisés, de Davi, de Rute e Noeme, de José do Egito...


Mesmo adulto, de quando em vez estava eu a lhe pedir que contasse alguma história de seu tempo em Santa Quitéria, ao que ela respondia com um risinho doce: “Sei mais não, menino!” Eu insistia a que contasse aquela do “comendo eu e meu cavalo”. Então ela continuava do ponto em que eu tinha deixado.

– Ah, bom, é aquela história de trancoso, que mamãe já me contava. Então esse homem andava no mundo com seu cavalo. Ele era vendeão de remédios do mato, que a gente hoje chama de homeopata. Era um homem muito esperto por ser negociante de muito tempo. Certa vez ele chegou num povoado de gente besta. Ele e seu cavalo iam com muita fome e sede. Logo na entrada soube que tinha uma mulher que estava com uns três dias com dor de parir. Esperto que era, e, querendo garantir comida e água para ele e seu cavalo, disse que sabia um remédio que fazia a mulher parir! Mandaram chamá-lo. Adentraram com ele no quarto, onde estava a mulher muito abatida no fundo duma rede e uma enorme barriga que subia e descia pelas contrações. Ele disse: “Tem jeito”. E ficou por ali fazendo cera, esgaravatando os medicamentos da maleta. Por fim, disse: É, de fato, sei um remédio infalível que faz a buchuda parir ligeiro bala, mas... mas, saco vazio não se põe em pé. O povo da casa compreendeu que o homem estava com fome e logo não lhe faltou mais nada, nem a seu cavalo. Trouxeram muita comida e água fria, até sobremesa. Já o cavalo foi levado ao pasto e ao lago, onde o banharam com água fresca e lhe deram muito capim verdinho, verdinho. Saciados homem e cavalo, o vendeão pediu um pedaço de papel e tinta e começou a escrever. Dobrou bem e voltou ao quarto, pedindo que ficasse apenas o marido da buchuda e a parteira. Enquanto a parteira apalpava a barriga da mulher, ajeitando o menino lá dentro, o vendeão pedia que a buchuda soprasse na boca duma garrafa, coisa que a parteira já vinha fazendo antes. O homem por seu turno, titubeava uma oração misteriosa, que ninguém conseguia decifrar. Terminou a oração e foi logo dizendo:

– Pronto, o serviço tá feito. Agora é só esperar que a mulher vai parir logo, logo. Não dou uma hora.

Montou seu cavalo e foi-se embora lavrado. Tão logo o homem sumiu no primeiro capão de mato, a criança chorou. A mulher tinha parido. Quiseram até ir anunciar ao homem. O alvoroço foi grande. Esse homem é um milagreiro. Um doutor. Esse homem é um santo de Deus! Pois não é que a mulher pariu mesmo!? E logo o povo se precipitou sobre o papelzinho da reza que o vendedor, por descuido, tinha deixado cair no chão. Trataram logo de abrir cuidadosamente o papel para verem e aprenderem a oração milagrosa! Abriram a primeira trouxinha com todo o cuidado para não rasgar. Depois mais outra trouxinha. Por fim chegaram ao escrito. Mas ninguém ali sabia ler. Mandaram chamar alguém que soubesse ler a reza. Veio. E começou a ler sob a expectativa de todos os curiosos. Uma única frase se repetia três vezes: “Comendo eu e meu cavalo, para quem quiser. Comendo eu e meu cavalo, para quem quiser. Comendo eu e meu cavalo, para quem quiser...”

O povo reconheceu que tinha sido enganado, mas como a mulher já tinha parido, tinham alcançado a graça, e o que importava agora era guardar aquela oraçãozinha para sempre, para usá-la com seu bocado de fé. Quanto ao vendeão o que ele era senão um santo?

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem