Pensamento Atemporal: Como Bauman, Umberto Eco também viu uma sociedade líquida

Dois textos de Umberto Eco que continuam atuais sobre o mundo contemporâneo, a tecnologia e as relações humanas

CARTA CAPITAL

Umberto Eco


'Com a crise do conceito de comunidade, emerge um individualismo desenfreado': Arquivo

Italiano nascido em Alexandria, morto em 2016, Umberto Eco honrou o epíteto de pensador. Os artigos reproduzidos a seguir - A sociedade Líquida (2015) e O celular revisitado (2005) - foram extraídos de Pape, Satàn, Aleppe, editado no Brasil pela Record e comprovam a atemporalidade de suas ideias.

A sociedade líquida (2015)
A ideia de modernidade ou sociedade “líquida” deve-se, como todos sabem, a Zygmunt Bauman. Para quem quiser entender as várias implicações do conceito, a leitura de Estado de Crise (Zahar, 2016), onde Bauman e Carlo Bordoni discutem este e outros problemas, pode ser útil.

A sociedade líquida começou a delinear-se com a corrente conhecida como pós-moderno (aliás, um termo “guarda-chuva” sobre o qual se amontoam diversos fenômenos, da arquitetura à filosofia e à literatura, e nem sempre de modo coerente).

O pós-modernismo assinalava a crise das “grandes narrativas” que se consideravam capazes de impor ao mundo um modelo de ordem e fazia uma revisitação lúdica e irônica do passado, entrecruzando-se em várias situações com pulsões niilistas. Mas, para Bordoni, o pós-modernismo também conheceu uma fase de declínio.

Era um movimento de caráter temporário, pelo qual passamos quase sem perceber, e que um dia será estudado, assim como o pré-romantismo. Servia para assinalar um acontecimento em andamento e representou uma espécie de balsa que levava da modernidade a um presente ainda sem nome.

Para Bauman, entre as características deste presente nascente podemos incluir a crise do Estado (que liberdade de decisão ainda têm os Estados Nacionais diante dos poderes das entidades supranacionais?).

Desaparece, assim, uma entidade que garantia aos indivíduos a possibilidade de resolver de modo homogêneo os vários problemas do nosso tempo, e, com sua crise, despontaram a crise das ideologias, portanto, dos partidos e, em geral, de qualquer apelo a uma comunidade de valores que permita que o indivíduo se sinta parte de algo capaz de interpretar suas necessidades.

Com a crise do conceito de comunidade, emerge um individualismo desenfreado, onde ninguém mais é companheiro de viagem de ninguém, e sim seu antagonista, alguém contra quem é melhor se proteger.

Este “subjetivismo” solapou as bases da modernidade, que se fragilizaram dando origem a uma situação em que, na falta de qualquer ponto de referência, tudo se dissolve numa espécie de liquidez. Perde-se a certeza do direito (a justiça é percebida como inimiga) e as únicas soluções para o indivíduo sem pontos de referência são o aparecer a qualquer custo, aparecer como valor (fenômenos que abordei com frequência nas Bustinas), e o consumismo.

Trata-se, porém, de um consumismo que não visa à posse de objetos de desejo capazes de produzir satisfação, mas que torna estes mesmos objetos imediatamente obsoletos, levando o indivíduo de um consumo a outro numa espécie de bulimia sem escopo (o novo celular nos oferece pouquíssimo a mais em relação ao velho, mas descarta-se o velho apenas para participar desta orgia do desejo).

Crise das ideologias e dos partidos: alguém já disse que estes últimos se transformaram em táxis que transportam caciques políticos ou chefes mafiosos que controlam votos, que escolhem em qual embarcarão com desenvoltura, segundo as oportunidades que oferecem — o que até torna compreensíveis e não mais escandalosos os vira-casacas. Não somente os indivíduos, mas a própria sociedade vive em um contínuo processo de precarização.

O que poderá substituir essa liquefação? Ainda não sabemos e esse intervalo ainda vai durar muito. Bauman observa que (com o fim da fé numa salvação proveniente do Alto, do Estado ou da revolução) os movimentos de indignação são típicos de períodos de intervalo.

Tais movimentos sabem que não querem, mas não o que querem. E recordo aqui que um dos problemas levantados pelos responsáveis pela ordem pública a propósito dos black blocs é a impossibilidade de rotulá-los, como se fazia antes com os anarquistas, os fascistas, as Brigadas Vermelhas. Eles agem, mas ninguém sabe mais quando e em que direção. Nem mesmo eles.

Existe um modo de sobreviver à liquidez? Existe e é justamente perceber que vivemos numa sociedade líquida que, para ser compreendida e talvez superada, exige novos instrumentos. Mas o problema é que a política e grande parte da intelligentsia ainda não entenderam o alcance do fenômeno. Por ora, Bauman continua a ser uma “vox clamantis in deserto”.

O celular revisitado (2005)
No início dos anos 1990, quando poucas pessoas tinham telefones celulares, mas estas poucas já conseguiam transformar uma viagem de trem numa coisa insuportável, escrevi uma Bustina bastante irritada. Dizia, em síntese, que o celular só devia ser permitido para os transplantadores de órgãos, os bombeiros hidráulicos (em ambos os casos, pessoas que, para o bem social, precisam ser encontradas de imediato onde quer que estejam) e os adúlteros.

Quanto aos demais, era sobretudo um sinal de inferioridade social, especialmente no caso de senhores imperceptíveis em tudo o mais, que vociferam no trem ou no aeroporto a respeito de ações, profiláticos metálicos e empréstimos bancários: os poderosos de verdade não têm celulares, mas 20 secretários que filtram as ligações.

Quem precisa de celular são os quadros médios obrigados a atender o diretor-executivo a qualquer hora ou o pequeno fazendeiro para poder receber do banco a comunicação de que sua conta está no vermelho.

Desde então, a situação dos adúlteros mudou duas vezes: numa primeira fase, tiveram de renunciar a este reservadíssimo instrumento, pois a simples aquisição de um celular já colocava o cônjuge em questão sob suspeita; numa segunda fase, a situação sofreu nova reviravolta porque, visto que agora todo mundo tem celular, ele deixou de ser prova irrefutável de adultério.

Hoje os amantes podem utilizá-lo, desde que não estejam ligados a personagens mais ou menos públicos, pois, em tal caso, a comunicação certamente estará sendo grampeada.

Nada mudou em relação à inferioridade social (ainda não vi fotos de Bush com o celular no ouvido), mas é fato que ele se transformou num instrumento de comunicação (excessiva) entre mães e filhos, de fraude em vestibulares, de fotomania compulsiva; além disso, as jovens gerações estão abandonando o relógio de pulso, pois veem a hora no celular.

Se acrescentarmos a isso o surgimento das mensagens, das informações jornalísticas minuto a minuto e a ligação via celular com a internet, a troca de mensagens eletrônicas wireless e o fato de que, em suas formas mais sofisticadas, ele funciona até como computador de bolso, veremos que estamos diante de um fenômeno social e tecnologicamente fundamental.

Ainda é possível viver sem celular? Uma vez que “viver-pelo-celular” implica uma adesão total ao presente e um furor do contato que nos priva de qualquer momento de reflexão solitária, quem preza a própria liberdade (seja interior, seja exterior) pode desfrutar de muitos serviços oferecidos pelo aparelho, exceto seu uso telefônico. Pode, no máximo, ligá-lo apenas para chamar um táxi ou avisar em casa que o trem atrasou três horas, mas não para ser chamado (basta mantê-lo desligado).

Quando alguém critica este meu hábito, respondo com um triste argumento: quando meu pai morreu, há mais de 40 anos (antes dos celulares, portanto), eu estava viajando e só pude ser contatado muitas horas depois. Pois bem, essas horas de atraso não mudaram nada.

Aliás, a situação não mudaria nem que eu fosse avisado em dez minutos. Isso quer dizer que a comunicação instantânea proporcionada pelo celular tem pouco a ver com os grandes temas da vida e da morte, não serve para quem está fazendo uma pesquisa sobre Aristóteles nem para quem reflete sobre a existência de Deus.

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O celular seria então inútil para um filósofo (salvo para levar no bolso uma bibliografia de 3 mil títulos sobre Malebranche)? Muito pelo contrário. Algumas inovações tecnológicas mudaram tanto a vida humana que se transformaram em tema da filosofia – basta pensar na invenção da escrita (de Platão a Derrida) ou no advento dos teares mecânicos (ver Marx).

Curiosamente, não existe muita filosofia a respeito de outras modificações tecnológicas importantes para nós, como o automóvel, por exemplo, ou o avião (embora tenham reflexos na transformação da ideia de velocidade).

Mas é porque só usamos automóvel ou avião em determinados momentos (à exceção dos taxistas, caminhoneiros ou pilotos), enquanto a escrita e a mecanização da maior parte das atividades cotidianas transformaram radicalmente cada momento de nossas vidas.

Mas Maurizio Ferraris acabou de dedicar um livro à filosofia do celular: Dove sei? Ontologia del telefonino, Bompiani, 2011. Talvez o título dê a entender que se trata de um divertimento despretensioso, mas Ferraris extrai do tema uma série de reflexões muito sérias, envolvendo o leitor num jogo filosófico bastante intrigante.

Os celulares estão mudando radicalmente nosso modo de viver e, portanto, transformaram-se num objeto “filosoficamente interessante”. Ao assumir também as funções de agenda portátil e pequeno computador conectado à internet, o celular é cada vez menos um instrumento da oralidade e cada vez mais um instrumento de escrita e leitura. E enquanto tal, tornou-se um instrumento oniabrangente de gravação e veremos como palavras como escrita, registro e “inscrição” são capazes de deixar um companheiro de Derrida de orelha em pé.

São apaixonantes, mesmo para os leitores não especializados, as primeiras cem páginas de “antropologia” do celular. Existe uma diferença substancial entre falar ao telefone e falar ao celular.

No telefone, era possível perguntar se alguém estava em casa, enquanto no celular (a não ser que tenha sido roubado) sempre sabemos quem responde e se este alguém está (o que muda nossa situação de “privacy”). Mas o telefone fixo permitia saber onde a pessoa chamada estava, enquanto agora fica sempre o problema de saber sua localização (aliás, se ele responder “estou nas suas costas”, mas for assinante de uma companhia de um outro país, a resposta inclui meia volta ao mundo).

No entanto, se eu não sei onde está a pessoa que fala comigo, a operadora sabe muito bem onde ambos estão de modo que a capacidade de escapar do controle individual corresponde a uma transparência total dos nossos movimentos no que diz respeito ao Big Brother de Orwell.

São possíveis várias reflexões pessimistas (paradoxais e, portanto, confiáveis) sobre o novo “homo cellularis”. Por exemplo: muda a própria dinâmica da interação face a face entre Fulano e Beltrano, que não é mais uma relação a dois, pois a conversa pode ser interrompida pela inserção celular de Sicrano e, assim, a interação entre Fulano e Beltrano procede aos soluços ou é interrompida.

Logo, o instrumento príncipe da conexão (eu estar sempre presente para os outros, assim como os outros para mim) torna-se ao mesmo tempo o instrumento da desconexão (Fulano está conectado com todo mundo menos Beltrano).

Entre as reflexões otimistas, gosto da remissão à tragédia de Jivago que, depois de anos, revê Lara do bonde, não consegue descer a tempo para encontrá-la e morre. Se os dois tivessem celular, como acabaria a trágica história?

A análise de Ferraris oscila (justamente) entre as possibilidades que o celular abre e as castrações às quais nos submete, principalmente a perda da solidão, da reflexão silenciosa sobre nós mesmos e a condenação à presença constante do presente. Nem sempre a transformação coincide com a emancipação.

Mas quando chegamos a um terço do livro, Ferraris passa do celular para uma discussão sobre os temas que sempre o apaixonaram nos últimos anos, entre os quais a polêmica contra seus mestres de origem, de Heidegger a Gadamer e a Vattimo, contra o pós-modernismo filosófico, contra a ideia de que não existem fatos, mas apenas interpretações, até uma defesa agora plena do conhecimento como adaequatio, ou seja (pobre Rorty), “Espelho da Natureza”.

Naturalmente com muita prudência, mas é uma pena não poder seguir passo a passo a fundamentação de uma espécie de realismo que Ferraris chama de “textualismo fraco”.

Como ele chega do celular ao problema da Verdade? Através de uma distinção entre objetos físicos (como uma cadeira ou o Monte Branco), objetos ideais (como o Teorema de Pitágoras) e objetos sociais (como a Constituição italiana ou a obrigação de pagar seu consumo no bar).

Os dois primeiros tipos de objetos existem também fora das nossas decisões, enquanto o terceiro tipo só se torna, por assim dizer, operativo depois de um registro ou inscrição.Uma vez dito que Ferraris tenta também uma fundamentação de certo modo “natural” desses registros sociais, eis que o celular se apresenta como o instrumento absoluto de cada ato de registro.

Seria interessante discutir muitos pontos do livro. Por exemplo, as páginas dedicadas à diferença entre registro (são registros um extrato bancário, uma lei, qualquer coletânea de dados pessoais) e comunicação.

As ideias de Ferraris sobre o registro são extremamente interessantes, enquanto suas ideias sobre a comunicação sempre foram um pouco genéricas (para usar contra ele a metáfora de um texto seu anterior, parecem compradas na Ikea). Mas no espaço de uma Bustina não se podem fazer discussões filosóficas aprofundadas.

Algum leitor poderá perguntar se era realmente necessário começar pelo celular para chegar a conclusões que podiam partir também dos conceitos de escrita e de “assinatura”.

Claro, o filósofo pode partir até de uma reflexão sobre as minhocas para desenhar toda uma metafísica, mas talvez o aspecto mais interessante do livro não seja o fato de que o celular permitiu que Ferraris desenvolvesse uma ontologia, mas sim, que sua ontologia permitiu que compreendesse e fizesse compreender o celular.

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