'Se o Judiciário seguir como ator político, vejo um futuro tenebroso'

Somente Lula é capaz de encontrar uma saída negociada para um país sob risco de uma convulsão social, avalia o ex-ministro
Por Rodrigo Martins, Carta Capital

Aragão integrou o Ministério Público Federal por 30 anos. Marcelo Camargo/Agência Brasil


A confirmação da condenação de Lula pelo TRF da 4ª Região representa a censura a um projeto democrático, por um Judiciário cada vez mais empenhado em fazer política.

A análise é do ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, integrante do Ministério Público Federal por três décadas. Ao rifar um candidato com mais de 40% das intenções de voto, indispensável para a articulação de uma saída negociada para o País, o risco de uma convulsão social torna-se cada vez maior.

“Lula não é um candidato ideológico, é pragmático e programático. Seu objetivo é reduzir a pobreza no País, dar chances para a maioria dos brasileiros progredir. Para fazer isso, o ex-presidente sabe que precisa de alianças”, explica Aragão, defensor de um pacto nacional, não restrito ao Parlamento.

Mas ainda há espaço para uma política conciliatória? “Esse é o maior desafio. Se Lula não souber fazer isso, quem será capaz?”

CartaCapital: Os desembargadores do TRF da 4ª Região não apenas confirmaram a condenação de Lula como aumentaram a pena imposta. Como o senhor avalia essa decisão?

Eugênio Aragão: É uma provocação. Em vez de demonstrar um pouquinho de respeito à soberania popular, eles resolvem chamar a sociedade para a briga. Pelo tom dos votos, vemos claramente uma reação corporativa, uma espécie de autodefesa do Judiciário. O perigo é muito grande para o País, essas pessoas não sabem o que estão fazendo. Os desembargadores repetem a velha cantilena das provas indiciárias, das suposições, sem prova concreta de nada. Mencionaram o “mensalão”, como se isso fosse uma continuação daquele processo e eles estivessem concluindo o serviço que não foi feito à época. É muito triste.

CC: Os desembargadores sinalizaram que Lula pode ser preso tão logo os recursos na segunda instância sejam exauridos.
EA: Não é bem assim. Há remédios jurídicos. A defesa pode solicitar no Superior Tribunal de Justiça um efeito suspensivo. Gostaria, porém, de chamar atenção para outro fato. O que está em jogo é muito mais do que o não provimento de uma apelação. Mesmo sem votos e sem mandato, os juízes estão decidindo por nós o caminho que o Brasil deve seguir. Está em xeque a credibilidade do Judiciário, porque ele ingressou em um terreno perigoso, que é o da arena política. A condenação de Lula significa censura a um projeto democrático, vinda de um órgão que não tem esse papel. E sabemos perfeitamente que o juiz Sergio Moro agiu com intuito partidário.

CC: Por que o senhor diz isso?
EA: Além de produzir uma sentença prolixa, na qual mais se justifica do que decide, o juiz tem sido um ator extremamente barulhento, que aprecia os holofotes e se dirige a convescotes com adversários dos governos petistas, a exemplo dos tucanos Aécio Neves e João Dória Jr. Do ponto de vista pictórico, vemos um magistrado que escolhe interlocutores hostis ao seu réu. Na espetaculosa condução coercitiva de Lula, só faltaram as algemas. Mobilizou-se uma megaoperação para levá-lo ao Aeroporto de Congonhas. Isso evidencia um quadro de profunda hostilidade, algo típico da arena política, e não do Judiciário.

CC: E o papel desempenhado pelo Ministério Público?
EA: A politização dos promotores e procuradores é antiga, advém do período logo após a Carta de 1988. No entanto, essa politização antes se voltava para a defesa dos direitos coletivos e interesses difusos, o que de certa forma era salutar. O Ministério Público colocava-se como intermediário entre o Estado e a sociedade. No momento em que passa a fazer política com ação penal, isso se torna pernicioso. Essa politização passa por cima de garantias processuais muito caras à nossa civilização, como a presunção de inocência. Por que essas garantias existem? A ação penal é profundamente assimétrica. De um lado, temos um acusado. De outro, temos o Estado, com todo o seu aparato repressivo. As regras processuais estabelecem-se como um contraponto a esse desequilíbrio. Quando o Ministério Público faz política, essa ação persecutória do Estado transforma-se em avalanche, a destruir tudo o que encontra pelo caminho.

CC: Ao apresentar em coletiva de imprensa a denúncia contra Lula, o procurador Deltan Dallagnol apontou o ex-presidente como chefe do esquema criminoso batizado como “Propinocracia”. A denúncia formal não o acusava, porém, de formação de quadrilha. Qual é a lógica desse movimento?
EA: Essa apresentação em PowerPoint nunca deveria ter existido. A ação penal é pública, mas não deve ser pornográfica, no sentido de expor o réu indevidamente. Não se deve expor indivíduos de baraço e pregão pelas ruas da vila, como nos tempos de dom Felipe. Os procuradores deveriam se resguardar à possibilidade de o réu vir a ser absolvido. O senhor Dallagnol agiu como um elefante em loja de louças.

CC: Em tese, a segunda instância deveria ser o espaço para corrigir erros e abusos. No entanto, praticamente todos os recursos de Lula foram negados. O caso tramitou com impressionante celeridade e o presidente do TRF da 4ª Região apressou-se a dizer que a sentença de Moro era “irretocável”.
EA: O tribunal não tem cumprido com o seu papel de pacificador das tensões sociais. Ao contrário, as manifestações públicas do presidente da Corte e mesmo do relator, Gebran Neto, tiveram efeito incendiário. Ao dizer que a sentença da primeira instância era “irretocável”, mesmo sem ter lido os autos, o desembargador Thompson Flores demonstrou claramente o seu partidarismo.

CC: Thompson Flores não integra a 8ª Turma, dos julgadores de Lula, mas é sempre chamado a se manifestar sobre recursos apresentados pela defesa contra decisões do colegiado.
EA: Não só isso, ele é a voz do tribunal. Como presidente da Corte, deveria ter mais decoro, mais cuidado com a imagem da instituição. Ele não teve esse cuidado ao antecipar o seu juízo e muito menos quando permitiu que a sua chefe de gabinete fizesse campanha política pela internet, colhendo assinaturas pela prisão do ex-presidente. Em que mundo vive um juiz que acha normal a sua principal assessora se portar dessa forma?

CC: O projeto imposto ao País com o golpe de 2016 resultou em regressão social. Mesmo após a supressão de direitos trabalhistas, o emprego formal segue em queda. Os índices de pobreza e desigualdade avançam. Qual será o futuro do Brasil?
EA: Se o Judiciário continuar se portando como um ator político, vejo um futuro tenebroso. A história não termina aqui. Lula pode ser impedido, mas as demandas da grande maioria da população, sobretudo a dos mais pobres, são concretas. Os conflitos sociais vão persistir e, com a retirada de direitos, devem se agudizar. Vemos a criminalidade aumentar, assim como a precarização do trabalho e a inadimplência. As grandes empresas nacionais, que poderiam desenhar um futuro mais promissor, estão em profunda crise ou estagnadas. Aonde vamos chegar? Em um cenário de conflagração, de convulsão social.

CC: Não há como reverter esse processo?
EA: É preciso bom senso. Lula representa a esperança de colocar o País de volta aos trilhos, uma perspectiva de desenvolvimento. Ele tem um projeto nacional, o que eu não vejo em outros candidatos. Quem mais deveria apostar nele são os empresários. Ao propor a retomada dos investimentos em infraestrutura, novas chances serão abertas. Hoje, o mundo busca lugares para investir capitais. Para atrair esses investimentos, o País precisa ter credibilidade, e isso começa pelas suas instituições.


CC: Por força dos recursos a serem julgados, há o risco de Lula passar ao segundo turno ou mesmo vencer o pleito e ter a candidatura cassada. O que aconteceria nesse cenário?
EA: Não existem precedentes no Tribunal Superior Eleitoral de uma candidatura vitoriosa ser cassada pós-eleições, ao menos em nível nacional. Pode haver alguns casos em prefeituras, coisas localizadas. Da mesma forma, se Lula vencer o primeiro turno e for barrado no segundo, isso fatalmente vai gerar grande dúvida sobre a legitimidade do processo eleitoral. Até porque, qualquer que seja o seu adversário na etapa decisiva, este terá um número muito inferior de votos. Isso acabará minando toda a representatividade do futuro governo, além de garantir a continuidade da crise político-institucional que vivemos desde 2016, quando o Temer deu o golpe parlamentar contra Dilma.

CC: Para inviabilizar a candidatura de Lula antes do primeiro turno, seria preciso acelerar o julgamento dos recursos, não?
EA: Não é tão simples, há prazos que precisam ser respeitados. As candidaturas podem ser registradas até 15 de agosto. O processo de impugnação só começaria depois disso. Aí temos os prazos para a manifestação da defesa. Acho difícil concluir todo o processo antes do primeiro turno. O calendário não favorece.

CC: Em recente artigo publicado em CartaCapital, o senhor diz que Lula é indispensável para uma saída negociada para o País.
EA: Lula não é um candidato ideológico, é pragmático e programático. Seu objetivo é reduzir a pobreza no País, dar chances para a maioria dos brasileiros progredir. Para fazer isso, o ex-presidente sabe que precisa de alianças. Por melhor que seja o resultado alcançado nas eleições, a esquerda nunca formará, sozinha, maioria no Congresso. Em um cenário otimista, vai eleger 160 deputados e 20 senadores. Não há chance de Lula governar sem um pacto nacional, capaz de superar esse clima de polarização que vivemos desde junho de 2013.

CC: A mídia tradicional e os porta-vozes do mercado apresentam Lula como um radical, no mesmo balaio de Jair Bolsonaro.
EA: Eles sabem que isso não é verdade. Conviveram com Lula por oito anos, sabem como ele governa. Nesse período, os bancos nunca lucraram tanto. Lula é um negociador extremamente hábil. Os meios de comunicação apostam em candidatos que lhes facilitem a vida. Durante os governos petistas, todos esses veículos tiveram o seu quinhão dentro da propaganda oficial, mas eles não se contentam, querem mais. Um dos primeiros atos de Temer foi retirar a parte destinada aos sites e veículos de oposição ao governo golpista e engrossar os repasses dos demais. Eles querem ter o monopólio, do mercado e da verdade.

CC: Dilma foi traída por aliados. Como prevenir um novo golpe?
EA: Com um acordo supraparlamentar, não adianta negociar só com o Congresso. Refiro-me a um pacto nacional, com os grandes setores. É preciso falar com aqueles que garantem os mandatos desses parlamentares. Os acordos deverão ser feitos com as federações da indústria, da agricultura, do comércio, com os bancos, além dos sindicatos e movimentos sociais. Precisamos de um plano de pacificação, com um consenso mínimo do que o País precisa. Um pacto dessa magnitude não se faz com deputados que querem prebendas para distribuir aos seus asseclas. Parece-me que o PT aprendeu: esse tipo de aliança redunda em chantagem permanente.

CC: Ainda há espaço para uma política conciliatória?
EA: Esse é o maior desafio. Se Lula não souber fazer isso, quem será capaz? Além desse pacto nacional, o País terá de rediscutir as suas instituições. Hoje, vemos uma hipertrofia do Judiciário, em detrimento dos outros Poderes. Ele se avoca o direito de barrar ministros, reformar decretos, bloquear projetos de lei em tramitação no Congresso. O desequilíbrio é enorme.

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