Carlos José Marques: O arroubo autoritário “Eu sou a Constituição”


Carlos José Marques, ISTOÉ - O delírio absolutista padrão Bolsonaro foi consagrado nessa semana com a já célebre frase que entoou à frente de seu Palácio, se autoprojetando como uma espécie de Rei Sol: “Eu sou a Constituição”, bradou diante da arraia miúda de veneradores idiotizados que rotineiramente fazem campana a sua porta para ouvir mais estultices. Por certo esquizofrênica, já que não guarda nenhum nexo com a realidade, a cantilena do “mito” reforça e desfralda os impulsos totalitários, hoje de conhecimento até das inertes pedras do Planalto. Desconsidere o vitupério. Nem Messias se aproxima do rei francês Luis XIV, que professou “O Estado Sou Eu” (no original, “L´Etat c´est moi”), muito menos nossa Carta Magna se presta à encarnação personalista que o capitão tenta fazer dela. Pelo bem geral da Nação, a Constituição acordada entre os brasileiros em 1988 materializou-se num pacto democrático ao qual TODOS se submetem, o presidente inclusive. Portanto, não capitão, a Constituição não é o senhor. Ela se sobrepõe, estando acima de sua figura, regendo e orientando seus passos, vigilante até aos seus desvios, como aos de qualquer outro cidadão. Ninguém está acima da Lei, nem é a própria Lei, como se pretende o patético mandatário que busca subverter a democracia. E ainda bem que a Carta existe para refrear tamanha cólera ditatorial, tantas vezes demonstrada aqui, acolá. Que seja usada, o quanto antes, para colocar as coisas no seu devido lugar. Hoje não existe mais quem possa manifestar surpresa diante das caudalosas provas de crimes de responsabilidade praticados por Jair Bolsonaro, reiterando afrontas ao Estado de Direito e ao posto que ocupa. Inúmeros são os atos de insubordinação à ordem constituída no prontuário de delitos do capitão. No fatídico domingo 19, da carreata dos insanos, ele, no entanto, perdeu de vez as estribeiras. Usando a portaria do quartel-general do Exército, conhecido no setor militar pela alcunha de “Forte Apache”, trepou numa caçamba de caminhonete e, em mangas de camisa, buscou liderar um arremedo de comício como a conclamar manifestantes à guerra. “Nós não queremos negociar nada. Queremos é ação pelo Brasil. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder. Lutem pelo Brasil”. No protesto de viés claramente golpista, que pregava o fechamento do Congresso e do STF e a volta do AI-5, Bolsonaro agrediu até o bom-senso. Da boca do mandatário da República, chefe do Executivo e comandante em chefe das Forças Armadas o que se ouviam eram palavras típicas de um anarquista, agitador sindical ou do que o valha. Não havia liturgia do cargo ou respeito ao Legislativo e ao Judiciário que modelasse o tom do orador. A turba de agitadores ostentava inúmeras faixas pedindo intervenção militar, gritavam a favor de ataques às instituições e em nenhum momento ele pensou em ordenar que os cartazes de insurgência a sua frente fossem baixados ou repreendeu as palavras de ordem golpistas. Não havia incômodo do capitão com nada. Apenas êxtase com a algazarra dos delinquentes daquele domingo. Compartilhava e compactuava dos mesmos desejos. Embalava-se no anseio de mandar e impor, sem dar espaço aos poderes moderadores, aos freios e contrapesos da democracia.
Bolsonaro, já deixou claro, não aceita ser limitado por ninguém e tem um entendimento muito raso do que seja governar. Daí as transgressões em cadeia. Prefere jogar para a plateia, como cortina de fumaça de suas notórias inabilidades. Ante a peste da Covid-19, preferiu escolhas irresponsáveis, menosprezou a devastação da doença, insuflou a desobediência ao isolamento sugerido pelos médicos, pelas organizações mundiais de saúde e por seu próprio ministro. Não gostou, quando contrariado. Demitiu. Deu show de incompetência, sabotando os esforços para conter a pandemia e, quando informado de estar perdendo base de apoio pelas sandices, procurou mais uma vez a zona de conforto dos conflitos e provocações. É só aí que sabe atuar. Com uma retórica belicista e horizonte mental limitado, não vai além de ideias como a de proibir radares de trânsito e dispensar cadeirinhas na condução de crianças nos carros. Sujeito primitivo no comando do País, não consegue também entender que são nulas as possibilidades de aventuras autoritárias. Na encenação do protesto do domingo, em pleno dia do Exército, numa simbologia que buscava ingenuamente passar o recado de ter o apoio da caserna a seus arroubos, rompeu uma barreira que mesmo os generais mais graduados ficaram constrangidos de presenciar. Estava ali o próprio mandatário conduzindo um ato que, na prática, desqualificava o próprio poder militar — cuja missão precípua é a de zelar pela ordem. Bolsonaro logrou fazer do coração do comando fardado um palanque político, numa ousadia que nem mesmo João Goulart, no seu célebre discurso da Central do Brasil (ao lado do antigo quartel do Exército), superou em provocações do gênero. As reações vieram em série. Mesmo das próprias forças militares. Dos ministros do STF aos presidentes da Câmara e do Senado, diversas instituições civis, como a OAB, do Ministério da Defesa, que soltou nota posicionando as Forças Armadas “sempre obedientes à Constituição”, até o procurador-geral da República, Augusto Aras, que encaminhou pedido de abertura de inquérito para apurar as responsabilidades na organização das manifestações, todos os setores se posicionaram em franca discordância ao ocorrido. Os quatro generais ministros da cúpula do Planalto pediram ao chefe da Nação uma reunião de emergência para tratar da crise e pedir moderação. Bolsonaro havia conseguido, dessa vez, a proeza da unanimidade contrária a ele. Aquiesceu e, no dia seguinte, como de costume, buscou contornar. Depois de avalizar as distopias com a presença e liderança do ato, se fez de rogado, desentendido, e alegou tratar-se de uma simples mobilização pela volta ao trabalho. Faz pouco caso da inteligência alheia, talvez medindo-a pelo próprio metro. No momento seguinte ao protagonismo indevido, redes sociais foram tomadas pelas milícias digitais com ataques aos alvos preferenciais do presidente — de Maia a Alcolumbre, passando pelo Judiciário, ninguém escapou à habitual ladainha dos robôs, replicada pela minoria de fanáticos adoradores do “mito”. O processo é conhecido e manjado. O capitão candidata-se a caudilho tal qual tentou, lá atrás, o coronel venezuelano Hugo Chávez. Do mesmo modo, sem apreço algum pela democracia, Chávez foi procurando minar diariamente instituições. Criticava adversários, mídia, parlamentares, para depois consagrar o seu projeto de poder. No Palácio de Miraflores, cercou-se de militares — qualquer semelhança não é mera coincidência, ao menos não na mente perturbada do caudilho bananeiro — e diuturnamente estimulou a polarização, desancando Justiça, partidos e opositores ao regime. Prendeu, expropriou, destruiu um país inteiro. Nos discursos, o venezuelano dizia que, com ele, o povo estaria no poder. Que ele é o povo. Lembra de algo? Seguindo na mesmíssima trilha, Bolsonaro mostra-se previsível na tentativa de um populismo tropical barato. No domingo, antes mesmo da anarquia engendrada, rumou para um lanche com os três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado. Deixou-se fotografar comendo milho e ketchup, tendo como cenário de fundo um quadro de metralhadora AK-47. Mais tarde, já em casa, vestiu camiseta amarela, bermuda e chinelos. Aboletou-se numa cadeira e tratou de assistir às “denúncias” do encalacrado aliado, Roberto Jefferson, que, sem prova alguma, falava de um plano diabólico montado pelo deputado Rodrigo Maia para tirá-lo da Presidência. Cada cena milimetricamente filmada. A patética opereta entre os dois servia ao intento corriqueiro: acionar o gabinete do ódio para disparos em massa de posts, enxovalhando ainda mais a reputação do rival que comanda a Câmara. Novidade zero. O “mito” em pessoa, na sua ânsia blogueira de quem se pauta pela esgotosfera, tratou de publicar em suas redes sociais a fala do “denunciante”. Ao lado dela, lançava fotos sobre a carreata da vergonha que, ilegalmente, rompia a quarentena. Eis Bolsonaro em estado bruto. Agindo como moleque insensato. Desconfortante é enxergar a apatia nas instituições que, embora manifestem repúdio aos rugidos golpistas, ainda reagem brandamente ao lidar com as insolências do capitão. Na própria petição para investigar “fatos delituosos envolvendo atos contra a democracia representativa brasileira”, algumas falhas são anotadas. A começar pelo pedido de sigilo do processo — o que não cabe, segundo boa parte dos juristas, por se tratar de fato de interesse público. O episódio foi praticado à luz do dia, filmado e resta também apurar o que o presidente em pessoa estava fazendo por lá e como participou dos atos. Basta ouvir as gravações e imagens para entender. A generalidade da investigação não leva a bom termo. Antes mesmo de toda essa balbúrdia, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, foi indagado sobre como estavam indo as coisas. Ao que respondeu: “tudo sob controle, só não se sabe de quem”. Dá para entender agora do que ele estava falando.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem