Edgar Moreno: "Em meu caminho tinha um carro"


Por Edgar Moreno
COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.

O dia nasce convulso e manco. Para as bandas do Bairro Madre Rosa uma mulher acorda para as habituais obrigações do dia: passar o café, levar os filhos à escola, arrumar a casa, pegar uma condução, ir ao centro, enfim, resolver a vida como qualquer pessoa normal. Contudo, por mais que queira, Lúcia não pode fazê-lo sem a ajuda de outras pessoas. Ela é cadeirante, tetraplégica, e depende de cadeira de rodas para se locomover e realizar seus compromissos.


Semelhantes à ela há no Brasil cerca de 28 milhões de pessoas com algum tipo de necessidade especial. São deficientes visuais ou auditivos, muletantes, deficientes intelectuais, autistas... Tal quantia equivale à atual população do Maranhão, Pará, Piauí, Ceará e Distrito Federal juntos. E, cá, na capital do Vale do Mearim não é raro vê-los por aí. Raro, sim, é encontrar uma família que não tenha alguma pessoa com deficiência física ou intelectual. E para isso não há rico ou pobre, preto ou branco, feio ou bonito. Ninguém, nem tu, leitor, está escape de te tornares uma pessoa com necessidades especiais. Só quem sofre na pele ou convive de perto, sabe o quanto a questão da acessibilidade é algo sério em nossa sociedade.

Um breve passeio com a nossa protagonista-cadeirante pode retratar um pouco dessa realidade não percebida ou negligenciada por grande parte das pessoas ditas normais, empresas e até governos. Há de se ver também que, apesar de suas limitações, as pessoas com deficiência (esse é o termo) são cidadãos que podem trabalhar, estudar, lazear, exercer papel ativo e participativo na sociedade.

E lá se vai Lúcia com seu marido professor e artista a empurrar sua cadeira de rodas pelas ruas da cidade. Destino: o Centro, com uma paradinha na Asdebal, entidade que congrega pessoas com deficiência. O primeiro obstáculo a cadeirante encontra ainda na Rua Madre Cândida, na vala do quebra-molas e na sucessão de buracos e calçadas irregulares ruas a fora. É preciso ziguezaguear, mesmo com o perigo iminente. Na Rua Magalhães, Seu Patrício tateia o asfalto com o cajado à procura da via de orientação para cegos, mas só vai encontrá-la no Banco do Brasil. O velho sanfoneiro também não ouve, como nunca ouviu, o semáforo sonoro na larga travessia da Magalhães, nem veria semáforo algum, se enxergasse.

Na Asdebal o serralheiro Ezequias, desce e sobe facilmente em sua cadeira motorizada, conversa feliz enquanto solda outras cadeiras, num serviço que já faz há anos ali mesmo naquele espaço, onde vez enquanto é palco de animadas assembleias da categoria. Agora Lúcia vai à URE/Educação. Ufa! Que bom! A Gerência dispõe de uma rampinha de acesso. Tendo que ir ao banco, ela encontra um carro de luxo estacionado na faixa de acesso. “E agora, como vou passar?”– fala a cadeirante ao sol quente. Uns transeuntes a acham implicante, mas nada dizem, também nada fazem. É necessário ir a algumas lojas. Mas como? Pouquíssimas têm rampas e banheiros adaptados. Já na rua, ensaia umas libras com um surdo-mudo, enquanto a tortinha Minervina chega a lhe informar sobre a pós-graduação que está cursando. À frente, numa loja do velho Brasillar recebe “o bom dia!” na sonora voz do locutor-cadeirante Gilberto. Lúcia retribui com seu tímido sorriso de mulher educada.

O sol queima. Lúcia volta para casa, limitada, ignorada em seus direitos, mas ainda esperançosa de um dia poder de fato ter acesso à sua própria cidade.

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