Edgar Moreno: Isso merece uma crônica



Por Edgar Moreno
COSTA FILHO, João Batista da que também representa o heterônimo Edgar Moreno.

Definitivamente aquele não era o dia de Astrogildo. Até pela alta tarde tudo parecia ir normal. Ou talvez não, todavia, nenhuma tarde o foi para ele como a daquele sábado até por volta das 21 da noite, quando voltou para casa e se pôs a dormir.


De fato, todo dia tem seu diferencial, mas quando se nos pomos a bisbilhotá-lo, a coisa vai pegando enredo e cada dia passa a ser “aquele dia”, cada hora “aquela hora”. Se duvidares disso, põe-te a escrever sobre teu dia de ontem, tua última hora. O fato é que, coitado do Astrogildo, o poeta teve um dia dramático, mas agora soa como uma boa comédia. Só agora, que o dia já é outro. Foi ele mesmo que me disse: “Isso merece uma crônica”. E eu, como um bom amigo e sempre à cata de um evento singelo que sirva para uma crônica, não me furtei ao trabalho de atender ao meu nobre colega das Letras.


A manhã lhe tinha sido de folga, ou quase, pois ao levar Lavínia à casa da vó Lu, teve de passar primeiro no local de trabalho, uma escola de bairro, para ver se o serviço de pintura ia bem. Que bom, o pintor letrista, há tantos dias esperado, tinha ido e já dava encaminhamento ao novo letreiro da escola. Com a filhinha na casa da avó, o filho com os coleguinhas e a esposa na aula semanal, Astrogildo se sentia um tanto livre para a vida, para ver um amigo, tomar um “refri”. Mas logo se lembrou da biografia de um colega que apenas tinha começado e, tendo que concluí-la, por que não rever os dados com o próprio Tom? E foi isso que fez. Foi ao apartamento do dito apresentador e, depois de um chá de cadeira foram tomar um “refri”, “refri” mesmo, próximo às águas do rio Mearim. “Esquecemos o papel e a caneta”, lembrou-se Astrogildo. O garçom quebrou-lhes o galho e começou ali, sobre uma mesa, numa palhoça do Ilha Bar, o jogo de perguntas e respostas, entre um gole e outro da Fanta Laranja, num ar de profissionalismo e colegagem, mais profissionalismo. Mas essa bonança de final de tarde, de resgate de fatos não durou o tempo previsto. E é bem aí que de fato começa “aquele dia” de Astrogildo, que já tinha passado por pelo menos duas situações inusitadas no trajeto até ali: a visita a uns apartamentos no centro da cidade, em companhia do amigo radialista e uma quase batida num velho motociclista que, à altura do Bambu Bar, atravessou-lhe na frente. Felizmente Astrogildo é inimigo da velocidade, do contrário...
A biografia caminhava em bom rascunho. De repente o celular de Astrogildo toca. Era seu filho que o chamava para levá-lo à Escola de Música. Deus do céu, o homem nunca tinha se lembrado disso.


− E não é à noite, meu filho?
−Não, pai, é agora, às quatro da tarde.


Astrogildo olha o relógio e vê que já está atrasado em vinte minutos. Tinha então de 15 a 20 minutos para ir em casa e levá-lo para assistir pelo menos parte dos 50 minutos da aula de Teoria Musical. O jeito era interromper o trabalho biográfico, chamar o garçom e... Novamente o celular. Agora era a própria senhora de Astrogildo, que saíra mais cedo do curso e dizia já está vindo do Colégio Batista pela Getúlio Vargas. Era também o segundo telefonema a cobrar que recebia naquele breve momento de mesa, agora de agonia.
−Vamos, Astrogildo, outro dia a gente termina, sugeriu o amigo, sem outro jeito a dar.


Nesse ínterim Astrogildo matuta consigo mesmo. Agora o que faço? Minha casa pra lá, Marina pra acolá! Ah, Deus, ainda tem o Tom! Felizmente esse morava no mesmo rumo. Já pensou se ele morasse na Trizidela ou no Cururupu? Ah! Já sei! Passo pelo prédio, deixo o Tom, pego a Marina, que já vem andando, deixo-a em casa ou no caminho quando encontrar o Miro, que já estar vindo a pé. E assim o fez, e assim o foi. Mas por onde ir? Eis o novo dilema: sair pela Avenida Mearim, subir a Barão de Capanema, pegar o correto trajeto da Rua 28 de Julho, dobrar à esquerda na Osvaldo Cruz até alcançar a Getúlio Vargas? Ou, chegando à Praça Silva Neto, pegar a reta da Getúlio Vargas até alcançar a esposa? E o risco de multa no pequeno trecho do Paraíba até a Rua Magalhães? Astrogildo não foi nem pela via correta, nem pela contramão, preferiu o caminho mais próximo e não necessariamente correto: subiu pela Rua do Trilho e, até que iria corretamente pela Delegacia até à Getúlio Vargas, não fosse o Tom que iria descer no Brasillar. Pegou então a Capitão Ascenso, e, para não se atrasar mais ainda pegando o correto trajeto da Rua Vinte e Oito, arriscou-se pelos vinte metros de contramão do Brasillar até a Magalhães. Felizmente não houve multa, felizmente não havia guardas, felizmente era sábado à tarde, e as ruas preguiçavam ermas de veículos.

(Quem nunca pegou aquela contramãozinha?) Astrogildo até que procura evitar, mas nesse dia... Felizmente os semáforos pareciam estar a favor dos motoqueiros. Ou não estavam? Pensando bem, não. O da esquina da Livraria Central sim; na Maranhão Sobrinho, o poeta já a transpôs no sinal amarelo, e teve de parar no semáforo da Teixeira Mendes, pela grande iminência de acidentes. Já o da Frederico Leda, que por sinal é custoso, parece que não estava funcionando. Ou estava? De qualquer forma o homem manteve a cautela e passou livre, e logo deu de vista com a esposa. Parou. Curvou. Ela montou e saíram convergindo pela Frederico Leda até o limite da Castelo Branco, onde um motoqueiro imprudente chegou a assustar o casal. Nada de mais anormal ocorreu daí em diante, senão a parada obrigatória na travessia da BR 316, naquele momento sem grande fluxo. Na estrada da Bela Vista, a buraqueira e os quebra-molas foram decisivos em mais alguns segundos de atraso. Um tempinho mais e o poeta pode ver o filho que vinha ainda à altura da 2ª Companhia de Polícia. A ideia de Astrogildo era deixar a esposa e levar o filho para, enquanto este assistisse à aula, pudesse o poeta continuar com o trabalho biográfico ou coisa do gênero, mas logo lhe veio da esposa o convite ao mesmo tempo solícito e decidido:


− Eu vou com vocês até lá. Ih, muitos numa moto tu não gostas de levar, mas só és tu e nós dois, disse já pondo o filho no meio de ambos.
Fazer o quê? Foram-se os três. Mas a viagem dura pouco. Ao olhar o relógio, o poeta torna consultar o filho:
− Que horas mesmo é que inicia a aula?
− Quatro horas, papai.
− Pois já está muito tarde, vamos voltar, disse a mãe.


Voltaram. Ao pregar os olhos na TV para uma descontração, o poeta se lembra de uma importante pendência. Naquela noite, às sete e meia, haveria uma reunião da Casa Literária da qual o poeta é membro-secretário. As atas a serem lidas não estavam prontas. Há meses e meses não se reuniam. Não podia deixar de ir, tampouco de levar prontas as benditas atas. Era uma responsabilidade sua, irrefutavelmente sua. Agora, o remédio era procurar os rascunhos e redigi-las. À mão? Não. No computador é bem mais prático. Depois é só imprimir. Até para leitura teria um melhor desempenho. E foi isso o que Astrogildo se propôs a fazer, já depois das cinco e meia da tarde. Daria tempo. Melhor não pensar nisso. Era começar para ver.


Felizmente o secretário ainda trazia uma boa lembrança daquela sessão solene de 12 de agosto de 2009 e foi-se recordando e montando a ata, deletando frases, substituindo outras, recorrendo ao termo de posse, aos processos e até um telefonema teve que fazer à presidenta para tirar uma dúvida. Foi bem aí que ouviu dela o certeiro prognóstico:


− Ih, vai chegar à reunião atrasado!


Já da reunião de 19 de dezembro o momento lhe morava ainda em algumas cenas. Na saleta de um prédio antigo da cidade tinha estado um bom número de acadêmicos, a presidenta com seu notebook e a chegada do secretário com a reunião em bom curso de andamento. Mas os assuntos tratados? As decisões? Olha o rascunho! Está tudo resumido. O suficiente para construir a ata. Fez, pois, ambas as atas, formatou-as, talvez tenha ficado algum deslize de correção. Já estava na hora da reunião. Precisava ir. Agora era só imprimir. Como? A pane do técnico no computador há alguns dias, afetou também a impressora que estava desconfigurada. Mas o poeta tentou assim mesmo. Nada. E o poeta continuou a cogitar outras soluções:


− O pendrive! Claro, isso mesmo! Copio no pendrive e levo para imprimir na escola. São uns 500 metros de curvas, quebra-molas e trânsito fluente, mas esta é a saída que eu vejo.


E assim o fez. Mas como estivesse apreensivo, para não dizer azarado, a cuia do pobre poeta caiu emborcada. Depois de todo o tempo de abrir portões e portas, ligar o computador, abrir o pendrive e finalmente o documento, o dito não abriu, ou melhor, abriu em código: o Windows da Escola – 97/2003 – era incompatível com o Windows 2007 do poeta. Melhor não insistir. Era voltar e salvar o arquivo no Windows 2003. No caminho Astrogildo ia pensando alto:
− Se ao chegar em casa pelo menos o computador já estivesse ligado, eu já ganharia um tempinho.


Mas qual! Ao sair pediu que Miro o desligasse. Pois não é que a criança o tinha obedecido! A essa altura já era noite e, o tempo, que não para a que amarremos o cadarço, continuava correndo contra o curto tempo do atrasado poeta à sua reunião. Abriu o computador e, convertendo o arquivo, pegou o pendrive e tirou novamente para a escola. Mas ao sair, a recomendação:
− Não desliga o computador.


Também na escola já tinha se dado esse mesmo imperativo: deixar o computador ligado, assim como a porta, que deixou apenas no trinco. De volta à escola pela segunda vez, deixou a moto na rua mesmo. Pronto,
agora era só plugar o dispositivo no computador, imprimir o documento e ir à reunião. Opa, não ainda. Precisa de algumas configuraçõezinhas na página.
− Pronto. Agora é só clicar Control “P” > página atual > 1 cópia > Ok imprimir!
Oba! Estava impressa a cópia da sessão solene. Agora vamos para a principal.
− ?????????? Oh! Não!


Atolamento de papel, não! Não! E não! Cancelar impressão. Tentar tirar o papel.
− Desatolado, finalmente! Tentar de novo! Mais uma vez!
A impressora não responde. Mas ela é novinha. Apenas uns seis meses de uso! Tem tinta? Ainda bem que sim! Desligar impressora. Não pode ser, começar do zero? Às vezes essa é a saída mais sábia e acertada: voltar para avançar! Um pouco paradoxal, não? Mas nem tudo se pode explicar assim.


− Vamos de novo: imprimir. Ahn?!?!!!!! Ah! Aleluia! Finalmente!
Custou, mas valeu a pena. A presidente vai gostar do ardiloso trabalho. Melhor ir, mesmo atrasado, mas com as atas bem feitas do que ir com as atas mal feitas e sem atraso! Finalmente podia ir à reunião.
−Nããããããããããooooooo! Não posso acreditar!


E tu o podes, leitor? Lembra-te de Lavínia, a filhinha que papai havia deixado na casa da vó Lu? pois ela continuava lá e certamente ansiosa por voltar à sua casa. Além do que, ao sair de casa pela segunda vez, Marina já havia dito a Astrogildo:


− Não vai esquecer a Lavínia!
E agora, era melhor ir à reunião e só depois pegar a criança? Ou priorizar a criança? Em ambos os casos já estava atrasado mesmo! Astrogildo optou em priorizar a filha, assim poderia assistir à reunião mais sossegado.
Tirou para a Cohabinha. Nem entrou e nem teve o trabalho de chamá-la. Felizmente a guria já estava na sala no aguardo do pai. Acelerou um pouco, quando pode.


− Pai, o senhor está indo muito depressa! – disse a criança.
Acautelou-se e seguiu – ainda bem – sem problemas. Não chegou a deixá-la na porta de casa, mas na esquina mais próxima. Voltou correndo para a reunião, que já deveria estar bem avançada, pois já estava próximo das oito e meia da noite, além do que os acadêmicos – e brasileiros no geral – se atrasam pra dedéu. Astrogildo nesse ponto é brasileiríssimo. É ele próprio que costuma brincar:


− Sou assíduo, mas não pontual.
Preferiu a via mais curta, a Rua 12 de Outubro via Gonçalves Dias, via Praça Chagas Araújo, via XV de Novembro e finalmente Barão do Rio Branco, onde se erguia, imponente, o prédio da Associação Comercial, com sua fachada azul turquesa, antiga, conservada, resoluta e fechada. Isso mesmo, todas as portas, janelas e portões fechados. Ligou à presidente. Foi ela mesma que atendeu:
− Não houve reunião. Os imortais não vieram. Não houve quórum.
Astrogildo parou, riu, de um riso neutro, e, tentando consolar-se engoliu baixinho:
−Isso merece uma crônica.

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